19/02/2008

o jornal que cheirava a baunilha

Em frente ao tribunal há um café, que também serve pratos do dia. De manhã, quase sempre pela mesma hora, a estrela da música pimba coincide ao balcão com o eminente jurista. Moram ambos no prédio em frente. Ela não passa de uma miúda, que parece mais velha na televisão. Prende os cabelos castanhos, muito compridos, com ganchos baratos de cabeleireiro, não tem um traço de pintura e está de chinelos de quarto azuis, enfeitados na ponta com dois coelhinhos bordados. A domesticidade, no entanto, não a prejudica: vê-se que é muito bonita, embora a pele um bocado estragada, talvez das camadas de base, das noitadas, dos holofotes em excesso. Enrosca-se num xaile colorido e usa um perfume adocicado com um travo a baunilha que se espalha pelo café, pousando nos queques e nos bolos de arroz. Folheia as páginas do correio da manhã com um ar compenetrado, o esforço de leitura reflectido na ruga da testa. Ele, de fato completo e gravata, camisa branca e peúgas a condizer, os cabelos grisalhos aparados, traz, na mão esquerda, uma pochete preta onde guarda o dinheiro, o passe da carris e os óculos de ver ao perto. É um professor catedrático muito conhecido, daqueles que ajudam os governos a fazer as leis e que vão de vez em quando ao parlamento e à televisão explicar as minudências dos novos códigos, dos penais aos da estrada. Enquanto ela beberrica a bica cheia, ele engole de um trago a italiana, após o que fica por ali, ao balcão, a trocar banalidades com o dono do café, embebido na áurea de beleza que dela se desprende. Após uma leitura sofrida das páginas cor-de-rosa, a estrela enfada-se, dobra o jornal e pousa-o ao lado do seu cotovelo direito, abanando as pulseiras com motivos étnicos que lhe enfeitam o pulso tatuado. Ele pede-lhe qualquer coisa como se numa confidência, curvando-se um pouco (é mais baixo do que ela), pergunta-lhe se já leu e trocam algumas palavras. Ela diz que sim, mas ele, que enfrenta ministros e jornalistas sem sequer pestanejar, olha-a envergonhado e hesita. Ela insiste e sorri-lhe abertamente e ele, o homem por causa de quem ela não pode conduzir a mais de cento e vinte nas auto-estradas e ficaria seguramente sem carta se estacionasse no passeio em frente, agradece-lhe embevecido, agarrando o jornal e inspirando, guloso, o cheiro a baunilha que se solta no ar.