24/10/2012

o fala-barato e a advogada por clarificar

A advogada preta, gira, esperta e de dicção perfeita, defende dois arguidos pretos que alegadamente roubaram outro da mesma raça. Aqueles remetem-se ao silêncio, numa estratégia que viria a revelar-se inteligente e deixam a vítima  meter os pés pelas mãos, contradizendo-se, voltando atrás, os olhos erráticos e o corpo a tiquetaquear, denunciando as pequenas mentiras e as meias verdades com que insiste em penalizar a assistência. A trama adensa-se: bem visto bem visto, todos se conhecem, arguidos e ofendido, tudo gente do mesmo bairro, da mesma terra de miséria. Vislumbra-se negócios comuns, trocas duvidosas, promessas incumpridas, mal-entendidos e o que parecia um roubo com violência depressa passa a extorsão,  a mero direito de regresso, a brincadeira de mau gosto. Ameaças não escutadas, armas fantasma, pneus que ninguém viu furados, polícia chamada ao local e os três em amena cavaqueira. Dois arguidos que poderiam afinal ser as vítimas. A advogada pretende ver "clarificados" alguns factos, o que não admira, dada a confusão instalada. O juiz dobra-se para o procurador e sussurra: "quer clarificar a ver se fica mais branca". Riem baixo mas sem decoro, numa xenofobia tonta e cúmplice. O procurador, entretanto, começa a fartar-se da verborreia do suposto ofendido, uma lamuria de cigano em corpo fininho de santomense, enquanto os arguidos permanecem calados, deixando-o enredar-se na sua teia suicida. A paciência é uma virtude que se esgota na directa proporção do esvair das expectativas em se atingir o objectivo primordial e a saturação de sexta à tarde começa a fazer perigar a justiça material: todos querem um fim rápido, e não especialmente misericordioso . Quando as bocas já de contornos para baixo, os suspiros de exasperação se fazem ouvir e a mulher de bata que lá fora passeia o caniche, enquadrada na janela de grades, se torna o facto mais interessante da tarde, entra a testemunha da defesa. Outro santomense, sessenta e muitos, gordo e assustado. Após o juramento da praxe, e no silêncio que se faz enquanto penosamente se senta na exígua cadeira, ouve-se um toque de telemóvel, o dele, personalizado. Nossa nossa assim você me mata ai se eu te pego ai ai se eu te pego. A advogada que precisa de ser clarificada solta uma sonora gargalhada que ecoa na outra ponta da sala, no velho ar condicionado avariado, contagiando todos os presentes e ganhando assim mais uns minutos de tolerância para o ofendido, cada vez mais enfiado nos seus pequeno corpo e embaralhado solilóquio. Mas não o tempo suficiente para que o juiz não se decida, a final, pela absolvição dos arguidos, que vão em paz. Pena não haver um crime para quem entedia de morte a Justiça, pensa o Procurador, enquanto arruma as canetas: mandava já extrair certidão contra o filho da puta deste fala-barato que me vai fazer chegar atrasado ao ginásio.